quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Dos seus olhos, chuva.


 Todo ano era assim, mudava a estação e logo ela chegava com seu ar urbano naquele bairro do subúrbio, um sacrifício que fazia todo ano para manter as aparências com a família da casa ao lado. Era a melhor época do ano pra mim, a que eu mais ansiava. Meu natal particular.

 Às vezes, durante o longo período entre uma visita e outra, sentia vontade de me sentar na janela da sala, assim como os cactos que minha mãe cultivava, e ficar por ali, aguardando seu retorno. Pensei seriamente em fazer isso, já até me imaginei ali durante o inverno, com estalactites penduradas em meu nariz, uma bem grande pendurada no queixo, como uma imensa barba glacial, e uma em cada orelha, como delicados brincos. Os cílios todos cheios de neve fina que caiam e derretiam nas rubras bochechas ao piscar. Mas nesse ritmo não estaria nesse plano astral pra te ver chegar, então desisti.

 A noite que antecede seu retorno eu mal prego os olhos, tamanha vontade de rever seus finos cabelos ondulantes sendo jogados para trás, seus movimentos de bailarina boêmia e sábia. E lá estava ela, saindo do carro vermelho novamente. Aposto que estava profundamente aliviada em deixar o automóvel e o papo furado que o conduzia. Como sempre, cumprimenta o cachorro por mais de dez minutos. O cachorro é sua pessoa preferida.

 Entra e fecham a porta. Sei que irão soterrá-la com perguntas fúteis e inconvenientes, mas ela é educada demais pra mandar todos para o inferno. Ela não combina com essa rua empedrada e empoeirada. Ela me lembra filmes franceses que nunca vi, música alternativa e planetas distantes. Tenho uma prateleira ao lado do abajur para o caso de um dia ela ser minha, e é lá no alto que eu vou coloca-la.
Depois de forçar um social simpático e comer sua comida de passarinho, ela foge para o jardim. Foge pra mim. Fugimos.

 Encosta o peito no muro e tira do bolso os cigarros. Flutuando, sento no muro que nos divide: uma perna em sua vida, outra na minha fossa. Coloca dois cigarros na boca e os acende de uma vez só: um pra mim, outro para seus lábios. Longo sorriso, longo silêncio, longa tragada, esse é nosso “oi”, nosso momento de despir a alma, apenas ondas eletropenetrantes de sentimentos recém tirados do forno.

 ­ O que tem pra mim dessa vez?

 Consegue ver como o ar fica leve agora? Ele adora brincar com suas roupas esvoaçantes e roçar seus dentes pontiagudos. E dessa vez a presenteei com uma pintura mais ou menos assim: coloquei em sua cabeça uma coroa de flores, enquanto tentava se equilibrar em trombas de elefantes tailandeses, nos lábios sorridentes não pude deixar de enfatizar os dentes tão perfeitamente peculiares.
Ela observou por um grande período (maior até do que aquele em que cumprimenta o cachorro) e entre um riso frouxo e outro pergunta:

Por que me fez vampira?

 E foi ai que perdi o espetáculo. Sabia o que ela estava fazendo, me forçando a exprimir meus pensamentos, propositalmente sempre me faz explicar a arte.

Seus dentes são lindos. Combinam com o espírito dos seus olhos, seu gosto por filmes, sua preocupação com o todo, combinam até com o cachorro, combinam com minhas estalactites...

 É melhor não falar nessas malditas estalactites antes que eu tenha que explicar o que são.
Goteja no papel. Olho pra cima esperando que a chuva lave a vergonha do momento. Nada além de céu limpo e estrelas. Ah, estrelas. Quase começo a aponta-la o nome de cada constelação quando o sibilar de um soluço me estapeia o estômago. Ela chorava, chorava com susto de felicidade.

 ―É realmente muito lindo. Combina com a tintura da minha parede.

 E entra, sem dizer mais nada. Ainda bem que sua beleza é um evento anual. 


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